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Mentoria Interna ou Chefia Disfarçada?


@lampoglia
@lampoglia

Se a sua “mentoria” começa com um convite inspirador e termina com um relatório para a diretoria, isso não é mentoria — é mecanismo de controle com roupa de crescimento. Nos últimos anos, programas internos multiplicaram-se como promessa de desenvolvimento. Na prática, muitos viraram auditoria emocional: um espaço para medir alinhamento, calar divergências e reforçar a hierarquia. Bonito na teoria, tóxico no cotidiano.

Mentoria não é extensão de comando. Mentor não é fiscal de lealdade, nem despachante de carreira. Mentor não aprova férias, não define salário, não carimba promoção. Mentor amplia repertório, tensiona crenças, protege o pensamento crítico e abre portas que não dependem do crachá. Se o “mentor” é seu chefe direto (ou o amigo do chefe), o jogo está viciado: você não fala do que realmente dói, ele não escuta o que realmente precisa, e ambos encenam maturidade organizacional.

O disfarce se revela em sinais simples: sessões focadas em “como vender melhor suas ideias para o seu gestor”, relatos que sobem a cadeia com nomes e interpretações, metas da mentoria confundidas com metas da área, “feedbacks” que soam como advertência educada. Quando a pessoa sai da conversa mais cautelosa do que curiosa, isso não é mentoria: é adestramento. E o custo é alto — empobrecimento da autonomia, congelamento da inovação, fuga silenciosa de talentos.

“Mas Marco, dá para fazer mentoria interna de verdade?” Dá — se houver paredes éticas e desenho de governança. Começa por um princípio inegociável: confidencialidade. O que é dito entre mentor e mentorado não vira insumo para performance review. Em seguida, independência: o par mentor–mentorado deve ser cruzado entre áreas, sem vínculo hierárquico e sem conflito político. Depois, contrato de aprendizagem: objetivos claros de desenvolvimento (competência, projeto, transição) e não “melhorar a comunicação com o chefe”. Por fim, métricas de aprendizado, não de conformidade: o que a pessoa passou a fazer, decidir, entregar e ensinar depois da mentoria.

O chefe dirige o carro; o mentor é o farol que mostra rotas e riscos. Se o farol começa a girar o volante, virou motorista fantasiado — e a empresa volta para o trânsito do costume.

Quando a mentoria é redesenhada com confidencialidade, pareamento cruzado e metas de competência, o efeito aparece rápido: gente aprende a negociar escopo sem escalar conflito), carreiras deixam de depender de favores), há futuro visível sem politicagem. Não é magia: é arquitetura organizacional que libera a mentoria do papel de polícia.

Como saber se o seu programa é mentoria ou chefia disfarçada? Faça o teste de um parágrafo. Descreva, sem adjetivos, o que acontece numa sessão típica: quem fala mais, quem define pauta, quais decisões saem dali, o que é registrado, quem tem acesso. Se a descrição parecer uma reunião de alinhamento com verniz humano, você já tem a resposta. Se parecer uma oficina de raciocínio estratégico sobre problemas reais do mentorado, com perguntas difíceis e autonomia preservada, aí sim: mentoria.

O passo seguinte não é abolir tudo; é refatorar. Separe trilhas: gestão de desempenho fica com o gestor; mentoria foca desenvolvimento e transição; coaching interno, quando existir, trabalha metas comportamentais específicas com duração definida; e conselho de pares cuida de decisões complexas sem transformar vulnerabilidade em exposição. Defina um “firewall” entre mentoria e avaliação anual. Crie um código de conduta do mentor (confidencialidade, neutralidade, anti-retaliação) e forme a rede de mentores com gente que não precisa de plateia para ser referência. Publique critérios de elegibilidade do programa; abra match por interesse de aprendizagem, não por conveniência política.

O desconforto é inevitável — e saudável. Mentoria que nunca fricciona crenças não passa de aula particular de obediência. Empresas que trocam controle por desenvolvimento colhem gente que decide melhor, aprende mais rápido e coordena conflitos sem precisar “subir” tudo. Empresas que insistem em chefia disfarçada colhem silêncio, desalento e turnover com LinkedIn aquecido.

Se for para manter o teatro, é mais honesto dizer que a prioridade é disciplina e alinhamento. Se for para crescer pessoas, desfaça o disfarce, redesenhe a governança e trate a mentoria como o que ela é: um espaço de coragem para pensar diferente e entregar melhor. Concorda ou discorda? Qual seria a primeira regra do seu código de mentoria real?


Marco Antonio Lampoglia, MSC - CEO da Active Escola de Negócios

 

 
 
 

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